Entrevista de António Matos a Gonçalo Correia
As
perguntas que se seguem foram colocadas pelo colega António Matos, no âmbito de
um trabalho para a cadeira de Introdução às Religiões da Ásia, na Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa. As questões seleccionadas incidem sobre o
Hatha Yoga em particular, sua origem e objectivo final, relação com outros
tipos de Yoga como Raja e Jñana, a Tradição num contexto contemporâneo, etc.
Tentei responder de forma clara e segundo a minha própria vivência. Espero que
as respostas vos possam ser úteis e sejam esclarecedoras de algumas questões
que possam ter.
Você está formalmente ligado a alguma sampradaya
tradicional com raízes na Índia, e a alguma instituição yogica no ocidente?
Num determinado
Satsang no Yoga Hall do Shivananda Ashram, com vista para o rio Ganges, um
indiano pediu ao Swami Muktananda ji para ser iniciado como seu discípulo. O
swami ji respondeu-lhe que se ele praticasse os seus ensinamentos, se dedicasse
um momento do dia para a interioridade, para a meditação então tornar-se-ia seu
discípulo. Não seria, portanto, necessário formalizar a iniciação.
Sei que existem
gurus genuínos que não iniciaram formalmente nenhum discípulo. Estou ligado a
alguns yogis, que com o seu olhar, ensinamentos e presença me inspiraram. Não
estou ligado a nenhuma instituição yogica no Ocidente.
Hatha yoga é o "yoga da harmonia do Sol e da Lua (+ e -)" ou é o "yoga da força/violência"? Como definiria Hatha Yoga?
Hatha Yoga é o Yoga
da harmonia de Ha (sol) e Tha (lua), pingala e ida, prana e citta, acção e
observação. Mas também simboliza a dissolução de citta no Atma com o despertar
da Kundalini Shakti (Atmashakti) a Energia Criativa do Ser.
Para mim o Hatha
Yoga tem sido aquele aspecto do Yoga com o qual me preparo para receber os
estados meditativos de uma forma mais consistente e natural. O Yoga não cria
nada de novo mas conduz a uma percepção mais clara e dá-nos confiança para
compreender a Realidade Imutável, aquilo que sustenta a vida.
Podemos estabelecer uma relação de criação e pertença
do Hatha Yoga à Nath Sampradaya?
O que eu sei é o que
dizem os shastras. É dito que foi Shiva quem transmitiu o Hatha Yoga a sua
primeira aluna, a esposa Parvati. Os Tantra shastras muitas vezes aparecem
sobre a forma de diálogo entre Shiva e Parvati. No Hatha Yoga Pradipika está
escrito que foi Adhinath (Shiva) quem primeiro ensinou o Hatha Vidya.
Svatmarama seu autor refere que aprendeu com os mestres Matsyendranath e
Gorakshanath. Diz também que alguns dos asanas descritos foram adoptados por
yogis como Matsyendranath e munis como Vasishtha. Ora, Vasishtha era um famoso
Jñana Yogi, a quem se atribui um tratado intitulado Yoga Vasishtha. Isto prova
que os asanas são importantes no contexto não só do Hatha Yoga mas também de
qualquer Yoga Sadhana.
O Hatha Yoga é mais baseado em tradição (oral) ou em
literatura escrita? Qual a literatura fundamental do Hatha Yoga?
Não há dúvida de que
a literatura escrita é importante e uma referência mas aquilo que de mais
profundo aprendi não só sobre Hatha Yoga como em Yoga em geral, foi em ambiente
de satsanga.
Aqueles com os quais
estou mais familiarizado são o Hatha Yoga Pradipika, Gheranda Samhita, Shiva
Samhita e Goraksha Shataka. Existe também um livro muito interessante, o
Bhavartadipika, que é um comentário à Bhagavad Gita e cujo autor é Jñanesvari,
reconhecido poeta e hatha yogi, jñani e bhakta.
Qual a relação entre Hatha Yoga e Yogasutras
(atribuídos a Patañjali)?
O caminho do Hatha Yoga é a via do Prana. O
Patañjala Yoga ou Yoga Darshana é a via de Citta (mente interior ou
consciência). Ambos se complementam. O tema é o mesmo, contudo a perpectiva é
diferente. Svatmarama ensina-nos a arte e ciência da “respiração” (convergir o prana)
por sushumna nadi (sushumna nirodha). Enquanto Patañjali expõe a arte de
suprimir as flutuações (vritti nirodha) da mente. Em ambos os casos, pretende-se
expandir a consciência e conhecer-se além dos limites da mente (atmajñana).
O Hatha Yoga é completo em si mesmo como caminho de
libertação, ou carece de Raja yoga e Advaita Vedanta (jñana yoga)?
Não há dúvida que
cada caminho tem práticas e filosofia próprias. Mas é também necessário ver que
o Hatha Yoga, o Raja Yoga e o Jñana Yoga estão interligados. Todos apontam no
sentido de reconhecermos aquilo que somos realmente. É difícil dizer onde
começa um e termina o outro.
É dito claramente no
Hatha Yoga Pradipika que o Hathayogavidya (Hatha Yoga) é como uma escada e um
meio para a realização do Raja Yoga. Raja significa ‘real’, ‘rei’, ou citando
Sri BKS Iyengar ji, Raja é o Ser (Atma). Este tipo de Yoga é dirigido àqueles
que vagueiam na escuridão da diversidade de opiniões, incapazes de seguir o Raja
Yoga. No quarto capítulo Svatmarama salienta que aqueles que não conhecem o Raja
Yoga e praticam apenas o Hatha Yoga desperdiça a sua energia inutilmente. Todos
os tratados enumerados anteriormente contêm ensinamentos de Raja e Jñana Yoga.
Qual o objectivo final do Hatha yogin, e como
alcançá-lo? Samadhi é o culminar do processo yogico, e uma experiência
momentânea de esclarecimento acerca do Ser, ou é a libertação final, e sempre
presente? Como compreender samadhi e moksha neste contexto?
Antes de mais o
objectivo do Yoga é tornar-me um ser humano melhor, mais consciente e com um
estilo de vida sattvico. Mas para termos sucesso é também necessário viver de
acordo com os princípios do Yoga, ter senso comum e cumprir com o seu dharma.
Depois podemos pensar em samadhi e moksha enquanto objectivo.
Hatha yoga tradicional e saúde/terapia estão ligados?
Saúde é algo de muito
genérico. Pode ser física, mental, emocional, etc. Voltemos aos Hatha Yoga
Shastras. Os asanas são o primeiro passo e praticam-se para se obter
flexibilidade, saúde, energia e estabilidade. A descrição posterior dos asanas
e respectivos benefícios refere-se também à purificação das nadis, à união do prána
com apana, ao despertar da kundalini, etc. Temos que ser práticos. Se não
tivermos saúde e se não cuidarmos mínimamente do corpo, não será possível
seguir na caminhada que é o Yoga. A doença (vyadhi) e apatia (styana) são
obstáculos ao yoga sadhana, causam inquietação mental.
O Hatha yoga tradicional como caminho de libertação é
possível fora de uma estrutura monástica e iniciática, com dedicação intensiva
e exclusiva?
Já referi na
pergunta 3 que a iniciação pode não acontecer de uma forma formal. O mais
importante é que a busca seja sincera e haja determinação. Se o sadhaka fôr
paciente, mais cedo ou mais tarde vai se cruzar com yogis genuínos que o
reconhecem, ajudam e instruem, independentemente de ele pertencer a alguma
tradição ou ser iniciado. A pureza do coração do sadhaka conta muito. Todos
estes factores juntos potenciam a sua caminhada.
No Yoga como caminho
da libertação, os períodos em que o yogi se dedica exclusiva e intensamente ao
sadhana, 1 vez por ano, por exemplo, são benéficos. Mas isso serve de pouco se
não houver sadhana regular, diário, especialmente se se trata de um professor
de Yoga. As opiniões são diversas, mas não nos esqueçamos que maiores que os
obstáculos externos, são os internos, os que estão na mente e que nos
acompanham para todo o lado. Yogi é aquele que se conquistou a ele próprio,
onde quer que ele esteja, vive em paz.
O Hatha yogin tradicional é necessariamente
vegetariano e abstémio? Qual a importância do vegetarianismo?
Da última vez que
estive na Índia tive oportunidade de estar com um Yogi amigo que por
coincidência abordou esse assunto. Ele dizia que o alho não deve ser usado como
alimento e sim como medicamento pelas suas propriedades, o café é um
estimulante mas muita gente bebe dois, três, quatro cafés como se fosse uma
bebida. Em relação às bebidas alcoólicas, ajudam a digerir a carne e alimentos
pesados. Ele é swami e vegetariano desde nascença, mas fala abertamente e com
clareza sobre este tema.
Penso que o processo
deve ser natural, uma escolha sincera, não imposta por outros e muito menos para
nos inserirmos e sermos aceites em determinados grupos de pessoas ou
instituições, sejam eles ligados ao Yoga, à Religião, Ecologia, etc. É
necessário discernir e sentir o que apoia e promove o sadhana, e o que se opõe,
e se as nossas opções vão ao encontro daquilo que queremos viver. O Yoga não
condiciona, liberta.
Como vê as diferenças entre uma vida de Hatha yogin
tradicional, renunciante, iniciática, e o hatha yogin contemporâneo ocidental,
que faz cursos de formação (inclusive profissionais), workshops de
especialização e aulas de yoga com vários professores?
Actualmente temos no
Ocidente um acesso incrível ao Yoga e ao Conhecimento. Temos muito bons
professores a ensinar, com dezenas de anos de experiência. Tudo está muito mais
disponível e isso é positivo. Mas também possibilita, simples praticantes ou até
mesmo professores, a acumular cursos e experiências, de um modo puramente
superficial e conhecimento ao nível mental sem que seja realmente compreendido,
digerido e realizado aquilo que é transmitido. E isso não é positivo. Primeiro
que tudo somos praticantes (sadhakas) e devemos colocar-nos nessa posição em
primeiro lugar. Enquanto professores devemos ensinar a partir daquilo que
digerimos e é a nossa experiência. Vou dar um exemplo: se faço um intensivo de
2 semanas, 5 horas por dia, com o Swamiji (Rudra Dev) que estuda e pratica à 35
anos com o mesmo guru, com toda a sua experiência de vida, quanto tempo preciso
para compreender e digerir aquilo que me ensina?
Na minha opinião
podemos experimentar diferentes métodos, fazer workshops, etc, mas é preferível
e mais fácil se estudarmos e formos acompanhados pelo mesmo professor pelo
menos durante uns anos. Nesse tempo estabelecem-se laços que vão além do ensino
das técnicas e muito do conhecimento do que é o Yoga é transmitido no silêncio.
A relação de confiança entre o professor e o aluno cria espaço para um
acompanhamento mais personalizado.
Granthis, Chakras, nadis e Kundalini são linguagem
simbólica ou correspondem a realidades psico-físico-energéticas?
Granthis, Chakras,
nadis e Kundalini são realidades percebidas através da prática, pela sua
experiência directa.
E prana/pranayama?
Prana é força vital,
a energia da vida. A respiração e circulação é a sua manifestação externa (sthula).
O Pranayama diz respeito à expansão e distribuição do prana através de técnicas
respiratórias. O prana é influenciado de forma negativa ou positiva pela
qualidade das nossas actividades diárias, relações, tendências mentais e
emocionais, alimentação, etc. Isso reflecte-se primeiro no corpo subtil e
conjunto de nadis, granthis e chakras, e depois ao nível da nossa saúde e
vitalidade geral. O pranayama trás firmeza ao corpo e conduz a introversão dos
sentidos e da mente (pratyahara) indispensável para limitarmos a actividade
mental (dharana) e mergulharmos na essência das coisas através da meditação
(dhyana).
O mais importante é a postura física ou a respiração (pranayama)
e atitude interior (bhava, visualizações, meditação, etc.)?
Todos estes aspectos
estão interligados e comunicam entre si. Uns conduzem aos outros.
Como avalia a actual variedade de asanas, com muitos
trikonasanas e outras posições, e muitos vinyasas, que não aparecem nos
shastras?
A Tradição é
dinâmica, pois mantém a sua essência, mas a forma como é transmitida pode mudar porque o mundo está sempre em
mudança. Para entender isso basta conhecer a vida de grandes yogis como o Sri
Ramakrishna, Swami Sivananda, Krishnamacharya, etc.
O Hatha yogin contemporâneo ocidental, deve ter algum
papel activo e responsável na sociedade?
Todos os Yogis sejam
eles de qualquer parte do mundo, têm um papel activo e responsável na
sociedade. Mesmo os sadhus que vivem nas grutas estão em contacto com o mundo.
Eles recebem visitas, dão conselhos práticos sobre a vida, ensinam, etc.
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