15.3.13

Uma perspectiva pessoal sobre a Tradição do Yoga

Entrevista de António Matos a Gonçalo Correia


As perguntas que se seguem foram colocadas pelo colega António Matos, no âmbito de um trabalho para a cadeira de Introdução às Religiões da Ásia, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. As questões seleccionadas incidem sobre o Hatha Yoga em particular, sua origem e objectivo final, relação com outros tipos de Yoga como Raja e Jñana, a Tradição num contexto contemporâneo, etc. Tentei responder de forma clara e segundo a minha própria vivência. Espero que as respostas vos possam ser úteis e sejam esclarecedoras de algumas questões que possam ter.  
Você está formalmente ligado a alguma sampradaya tradicional com raízes na Índia, e a alguma instituição yogica no ocidente?
Num determinado Satsang no Yoga Hall do Shivananda Ashram, com vista para o rio Ganges, um indiano pediu ao Swami Muktananda ji para ser iniciado como seu discípulo. O swami ji respondeu-lhe que se ele praticasse os seus ensinamentos, se dedicasse um momento do dia para a interioridade, para a meditação então tornar-se-ia seu discípulo. Não seria, portanto, necessário formalizar a iniciação. 
Sei que existem gurus genuínos que não iniciaram formalmente nenhum discípulo. Estou ligado a alguns yogis, que com o seu olhar, ensinamentos e presença me inspiraram. Não estou ligado a nenhuma instituição yogica no Ocidente.   

Hatha yoga é o "yoga da harmonia do Sol e da Lua (+ e -)" ou é o "yoga da força/violência"? Como definiria Hatha Yoga?
Hatha Yoga é o Yoga da harmonia de Ha (sol) e Tha (lua), pingala e ida, prana e citta, acção e observação. Mas também simboliza a dissolução de citta no Atma com o despertar da Kundalini Shakti (Atmashakti) a Energia Criativa do Ser.
Para mim o Hatha Yoga tem sido aquele aspecto do Yoga com o qual me preparo para receber os estados meditativos de uma forma mais consistente e natural. O Yoga não cria nada de novo mas conduz a uma percepção mais clara e dá-nos confiança para compreender a Realidade Imutável, aquilo que sustenta a vida.

Podemos estabelecer uma relação de criação e pertença do Hatha Yoga à Nath Sampradaya?
O que eu sei é o que dizem os shastras. É dito que foi Shiva quem transmitiu o Hatha Yoga a sua primeira aluna, a esposa Parvati. Os Tantra shastras muitas vezes aparecem sobre a forma de diálogo entre Shiva e Parvati. No Hatha Yoga Pradipika está escrito que foi Adhinath (Shiva) quem primeiro ensinou o Hatha Vidya. Svatmarama seu autor refere que aprendeu com os mestres Matsyendranath e Gorakshanath. Diz também que alguns dos asanas descritos foram adoptados por yogis como Matsyendranath e munis como Vasishtha. Ora, Vasishtha era um famoso Jñana Yogi, a quem se atribui um tratado intitulado Yoga Vasishtha. Isto prova que os asanas são importantes no contexto não só do Hatha Yoga mas também de qualquer Yoga Sadhana.


O Hatha Yoga é mais baseado em tradição (oral) ou em literatura escrita? Qual a literatura fundamental do Hatha Yoga?
Não há dúvida de que a literatura escrita é importante e uma referência mas aquilo que de mais profundo aprendi não só sobre Hatha Yoga como em Yoga em geral, foi em ambiente de satsanga.
Aqueles com os quais estou mais familiarizado são o Hatha Yoga Pradipika, Gheranda Samhita, Shiva Samhita e Goraksha Shataka. Existe também um livro muito interessante, o Bhavartadipika, que é um comentário à Bhagavad Gita e cujo autor é Jñanesvari, reconhecido poeta e hatha yogi, jñani e bhakta.

Qual a relação entre Hatha Yoga e Yogasutras (atribuídos a Patañjali)?
O caminho do Hatha Yoga é a via do Prana. O Patañjala Yoga ou Yoga Darshana é a via de Citta (mente interior ou consciência). Ambos se complementam. O tema é o mesmo, contudo a perpectiva é diferente. Svatmarama ensina-nos a arte e ciência da “respiração” (convergir o prana) por sushumna nadi (sushumna nirodha). Enquanto Patañjali expõe a arte de suprimir as flutuações (vritti nirodha) da mente. Em ambos os casos, pretende-se expandir a consciência e conhecer-se além dos limites da mente (atmajñana).

O Hatha Yoga é completo em si mesmo como caminho de libertação, ou carece de Raja yoga e Advaita Vedanta (jñana yoga)?
Não há dúvida que cada caminho tem práticas e filosofia próprias. Mas é também necessário ver que o Hatha Yoga, o Raja Yoga e o Jñana Yoga estão interligados. Todos apontam no sentido de reconhecermos aquilo que somos realmente. É difícil dizer onde começa um e termina o outro.
É dito claramente no Hatha Yoga Pradipika que o Hathayogavidya (Hatha Yoga) é como uma escada e um meio para a realização do Raja Yoga. Raja significa ‘real’, ‘rei’, ou citando Sri BKS Iyengar ji, Raja é o Ser (Atma). Este tipo de Yoga é dirigido àqueles que vagueiam na escuridão da diversidade de opiniões, incapazes de seguir o Raja Yoga. No quarto capítulo Svatmarama salienta que aqueles que não conhecem o Raja Yoga e praticam apenas o Hatha Yoga desperdiça a sua energia inutilmente. Todos os tratados enumerados anteriormente contêm ensinamentos de Raja e Jñana Yoga.

Qual o objectivo final do Hatha yogin, e como alcançá-lo? Samadhi é o culminar do processo yogico, e uma experiência momentânea de esclarecimento acerca do Ser, ou é a libertação final, e sempre presente? Como compreender samadhi e moksha neste contexto?
Antes de mais o objectivo do Yoga é tornar-me um ser humano melhor, mais consciente e com um estilo de vida sattvico. Mas para termos sucesso é também necessário viver de acordo com os princípios do Yoga, ter senso comum e cumprir com o seu dharma. Depois podemos pensar em samadhi e moksha enquanto objectivo. 

Hatha yoga tradicional e saúde/terapia estão ligados?
Saúde é algo de muito genérico. Pode ser física, mental, emocional, etc. Voltemos aos Hatha Yoga Shastras. Os asanas são o primeiro passo e praticam-se para se obter flexibilidade, saúde, energia e estabilidade. A descrição posterior dos asanas e respectivos benefícios refere-se também à purificação das nadis, à união do prána com apana, ao despertar da kundalini, etc. Temos que ser práticos. Se não tivermos saúde e se não cuidarmos mínimamente do corpo, não será possível seguir na caminhada que é o Yoga. A doença (vyadhi) e apatia (styana) são obstáculos ao yoga sadhana, causam inquietação mental.

O Hatha yoga tradicional como caminho de libertação é possível fora de uma estrutura monástica e iniciática, com dedicação intensiva e exclusiva?
Já referi na pergunta 3 que a iniciação pode não acontecer de uma forma formal. O mais importante é que a busca seja sincera e haja determinação. Se o sadhaka fôr paciente, mais cedo ou mais tarde vai se cruzar com yogis genuínos que o reconhecem, ajudam e instruem, independentemente de ele pertencer a alguma tradição ou ser iniciado. A pureza do coração do sadhaka conta muito. Todos estes factores juntos potenciam a sua caminhada.
No Yoga como caminho da libertação, os períodos em que o yogi se dedica exclusiva e intensamente ao sadhana, 1 vez por ano, por exemplo, são benéficos. Mas isso serve de pouco se não houver sadhana regular, diário, especialmente se se trata de um professor de Yoga. As opiniões são diversas, mas não nos esqueçamos que maiores que os obstáculos externos, são os internos, os que estão na mente e que nos acompanham para todo o lado. Yogi é aquele que se conquistou a ele próprio, onde quer que ele esteja, vive em paz.

O Hatha yogin tradicional é necessariamente vegetariano e abstémio? Qual a importância do vegetarianismo?
Da última vez que estive na Índia tive oportunidade de estar com um Yogi amigo que por coincidência abordou esse assunto. Ele dizia que o alho não deve ser usado como alimento e sim como medicamento pelas suas propriedades, o café é um estimulante mas muita gente bebe dois, três, quatro cafés como se fosse uma bebida. Em relação às bebidas alcoólicas, ajudam a digerir a carne e alimentos pesados. Ele é swami e vegetariano desde nascença, mas fala abertamente e com clareza sobre este tema.
Penso que o processo deve ser natural, uma escolha sincera, não imposta por outros e muito menos para nos inserirmos e sermos aceites em determinados grupos de pessoas ou instituições, sejam eles ligados ao Yoga, à Religião, Ecologia, etc. É necessário discernir e sentir o que apoia e promove o sadhana, e o que se opõe, e se as nossas opções vão ao encontro daquilo que queremos viver. O Yoga não condiciona, liberta.

Como vê as diferenças entre uma vida de Hatha yogin tradicional, renunciante, iniciática, e o hatha yogin contemporâneo ocidental, que faz cursos de formação (inclusive profissionais), workshops de especialização e aulas de yoga com vários professores?
Actualmente temos no Ocidente um acesso incrível ao Yoga e ao Conhecimento. Temos muito bons professores a ensinar, com dezenas de anos de experiência. Tudo está muito mais disponível e isso é positivo. Mas também possibilita, simples praticantes ou até mesmo professores, a acumular cursos e experiências, de um modo puramente superficial e conhecimento ao nível mental sem que seja realmente compreendido, digerido e realizado aquilo que é transmitido. E isso não é positivo. Primeiro que tudo somos praticantes (sadhakas) e devemos colocar-nos nessa posição em primeiro lugar. Enquanto professores devemos ensinar a partir daquilo que digerimos e é a nossa experiência. Vou dar um exemplo: se faço um intensivo de 2 semanas, 5 horas por dia, com o Swamiji (Rudra Dev) que estuda e pratica à 35 anos com o mesmo guru, com toda a sua experiência de vida, quanto tempo preciso para compreender e digerir aquilo que me ensina?
Na minha opinião podemos experimentar diferentes métodos, fazer workshops, etc, mas é preferível e mais fácil se estudarmos e formos acompanhados pelo mesmo professor pelo menos durante uns anos. Nesse tempo estabelecem-se laços que vão além do ensino das técnicas e muito do conhecimento do que é o Yoga é transmitido no silêncio. A relação de confiança entre o professor e o aluno cria espaço para um acompanhamento mais personalizado.          

Granthis, Chakras, nadis e Kundalini são linguagem simbólica ou correspondem a realidades psico-físico-energéticas?
Granthis, Chakras, nadis e Kundalini são realidades percebidas através da prática, pela sua experiência directa.

E prana/pranayama?
Prana é força vital, a energia da vida. A respiração e circulação é a sua manifestação externa (sthula). O Pranayama diz respeito à expansão e distribuição do prana através de técnicas respiratórias. O prana é influenciado de forma negativa ou positiva pela qualidade das nossas actividades diárias, relações, tendências mentais e emocionais, alimentação, etc. Isso reflecte-se primeiro no corpo subtil e conjunto de nadis, granthis e chakras, e depois ao nível da nossa saúde e vitalidade geral. O pranayama trás firmeza ao corpo e conduz a introversão dos sentidos e da mente (pratyahara) indispensável para limitarmos a actividade mental (dharana) e mergulharmos na essência das coisas através da meditação (dhyana).

O mais importante é a postura física ou a respiração (pranayama) e atitude interior (bhava, visualizações, meditação, etc.)?
Todos estes aspectos estão interligados e comunicam entre si. Uns conduzem aos outros.

Como avalia a actual variedade de asanas, com muitos trikonasanas e outras posições, e muitos vinyasas, que não aparecem nos shastras?
A Tradição é dinâmica, pois mantém a sua essência, mas a forma como é transmitida  pode mudar porque o mundo está sempre em mudança. Para entender isso basta conhecer a vida de grandes yogis como o Sri Ramakrishna, Swami Sivananda, Krishnamacharya, etc.

O Hatha yogin contemporâneo ocidental, deve ter algum papel activo e responsável na sociedade?
Todos os Yogis sejam eles de qualquer parte do mundo, têm um papel activo e responsável na sociedade. Mesmo os sadhus que vivem nas grutas estão em contacto com o mundo. Eles recebem visitas, dão conselhos práticos sobre a vida, ensinam, etc.  

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